Onde nasce o amor

 
Foi difícil, admito, mas com o tempo eu aprendi que os amores verdadeiros, desses que correm nas veias da alma e do corpo da gente, feito riachos e rios rabiscados na carne da terra, a fecundá-la por suas fluentes, nascem todos de uma fonte única: o amor-próprio. 
 
Não à toa, Jesus ensina que o princípio, a nascente de toda virtude, onde cada pessoa encontra o seu valor genuíno, se resume no amor a Deus e ao próximo “como a si mesmo”. Afinal, que parâmetros alguém pode ter para amar qualquer outro ser, com generosidade e aceitação, quando resiste a abrir para si mesmo o próprio coração?

Decisões

 
Oportunidades são como joio e trigo. 
Há de se pensar no longo prazo para discernir entre as boas e as ruins.
 

 

O descompasso da ansiedade

 
Tantas vezes eu caí em descompasso, perdi a sincronia com a vida, tangi tempos errados. Tantas vezes eu me vi preocupado com aquilo que ainda não havia acontecido, no afã inglório de obrigar as coisas a se encaixarem exatas nos arranjos dos meus desejos. E outras tantas eu sofri pós-ocupado com aquilo que já havia acontecido, na vã tentativa de resgatar coisas que se foram para mudá-las conforme os meus anseios. Cenas repassadas, em dezenas e dezenas de versões, sem jamais chegar à edição final, sem jamais retratar a vida real.
 
A ansiedade entorpece a alma com ilusões, seduz o coração para longe do tempo presente, faz a gente acreditar na possibilidade de alterar o que está fora do alcance das mãos. Ora no futuro, ora no passado, com menor ou maior intensidade, o ansioso sai do ritmo, embaralha a música da vida, cria sua própria cacofonia. E deixa de colher o doce fruto maduro, e de amar quem realmente merece, e perde a chance de desfrutar o instante, e de conhecer a grande sabedoria do agora.
 
Eu quero a plenitude de cada hora, quero reconhecer que tudo tem o seu tempo determinado, quero ter do passado a matéria-prima, o aprendizado, e do futuro, a inspiração, o sussurro encantado, para me entregar ao momento e dele tirar o acorde mais excitante. Quero compor uma obra de arte, tocar as cordas do presente como quem dedilha suavemente a pele cálida da pessoa amada. Porque, ao quedar as cortinas dos meus olhos, quando ressoar a última batida do meu coração, eu quero ouvir o derradeiro som com o prazer indizível de quem fez do conjunto da vida uma sinfonia, um trabalho único, nota a nota, dia a dia.
 

O valor de cada um

 

O abade se aproximou do noviço e tomou lugar ao seu lado no banco do jardim.
 
– Notei que você está enfrentando dificuldade para se relacionar com algumas pessoas.
 
– Acho que o senhor não observou direito.
 
O velho mestre se limitou a erguer uma das sobrancelhas.
 
– Algumas pessoas enfrentam dificuldade para se relacionar com quem tem opinião própria... E eu não vou mudar o meu jeito de ser por causa delas.
 
– Hum... Compreendo... Mas se você está tão seguro de si e das suas opiniões, por que precisa se impor dessa maneira?
 
E arrematou:
 
– A pessoa que faz de tudo para se impor, tentando a todo custo provar seu valor, é aquela que, por amargas experiências, lá no fundo, foi levada a duvidar dele.
 
O moço perdeu a fala. Uma mistura de sentimentos formou nó em sua garganta. Aquele homem havia ultrapassado facilmente as suas barreiras para, com ternura incomum, tocar em seu íntimo.
 
– Ser autêntico – prosseguiu o mestre –, num mundo onde todos tentam se ajustar a padronizações, é uma das maiores e mais importantes realizações humanas. Neste ponto eu concordo com você. Entretanto, autenticidade exige humildade, humildade para admitir que o próprio ser não está pronto e, em resposta, passar a construí-lo diante dos olhos das pessoas, com todos os erros e acertos que isso implica.
O abade fez uma pausa, seu olhar se distanciou, como se deixasse de enxergar as coisas ao redor para contemplar suas memórias.
 
– Sabe, filho, eu descobri que é nesse processo que a gente aprende a se amar, porque descobre qualidades valiosas em si mesmo. Daí, já não precisa provar coisa alguma a ninguém, nem lutar por aceitação, pois o nosso valor se expressa com naturalidade. 
 
Então, tornou a olhar nos olhos do noviço e concluiu:
 
– Ao reconhecer e aprimorar as nossas qualidades pessoais, a gente se dá valor de verdade. E quanto mais valor a gente se dá, mais valor a gente tem.
 
 

Tempo ao tempo

 

Lá pelo fim do século 19, algum homem sacou o relógio do bolso e, angustiado pelo tique-taque e o giro rápido do ponteiro dos segundos, deve ter considerado:
 
– Um dia hão de inventar um relógio sem ponteiros e sem barulho! Assim, este chato já não mais nos lembrará sem cessar da urgência da vida.
 
Hoje, quase sempre abolidos ou bem apequenados os segundos no mostrador, há silenciosos relógios digitais espalhados por todo canto. Eles nem se escondem nos bolsos, mas se agarram ao pulso das pessoas, reluzem nos aparelhos domésticos, nos veículos, em todo lugar que se vá.
 
Ah, o velho Cronos foi domesticado pela poderosa tecnologia. Feito bichinho, pode ser carregado para todo lado sem oferecer risco a ninguém. Cada vez que se mira o pobre tempo nos dígitos modernos, palitos rijos e brilhantes, ele se mostra obedientemente parado, convenientemente sem pressa, como se naquele instante estivesse congelado.
 
É... A sensação é de que o tempo já não corre. Quem corre somos nós. Medimos a nossa existência por metas, compromissos, compras e prestações a pagar. Sempre atrasados, sempre com alguma coisa a fazer ou conquistar, ficamos sem tempo para o tempo, e perdemos a consciência da sua ação sobre nós, dos limites que ele nos impõe, da brevidade da presença daqueles que amamos, da finitude dos nossos próprios dias.
 
E a gente se dá conta de que o tempo correu, e que deveria tê-lo aproveitado melhor, quando se surpreende com o final de um ano que ninguém viu passar, ou, pior, ao final de uma vida que escorreu ligeira e despercebida.
 
Ao refletir sobre isso, percebo o tiquetaquear do meu próprio coração, como se fosse uma delicada mas persistente oração, a pedir para Deus que me mantenha consciente de que a vida, a vida tem uma só urgência verdadeira: a urgência de ser vivida.